O príncipe estrangeiro: “Mas olha, vê com os teus próprios olhos.”
Branca de neve: “Não, diz, o que vês? Diz logo. Através dos teus lábios deduzirei o bonito desenho desse quadro. Se o pintasses, por certo atenuavas habilmente a intensidade da visão. Então, o que é? Em vez de olhar prefiro escutar.”
Não é preciso esperar muito, surge aos dezassete minutos o excerto que transcrevo. Quem para isso estiver disponível talvez encontre nele o sentido daquilo que aqui se discute, como enquadrar, a que se propõe, terá legitimidade para existir, o filme de João César Monteiro.
Quem se interesse pelo trabalho do realizador sabe da perturbação, da inquietação que o acompanhavam. Sabe que era da escuridão que ele arrancava os seus filmes. Estes começavam como esboços falhados de onde ele, às apalpadelas, ia retirando a luz, reescrevendo, encontrando o resultado final. Mário Barroso, o seu director de fotografia, conta que os seus filmes estavam a tornar-se cada vez mais negros. Que ele sentia esse pesar, mas não conseguia fugir-lhe. Branca de neve surge no meio de alguma convulsão pessoal, João César Monteiro começava a fundir-se nas suas personagens.
A fita acaba por sofrer todas as consequências. A sua importância aparece quando está incluída no seu contexto, a totalidade da obra do realizador, a história do cinema. Revelador dos mecanismos da construção cinematográfica, testemunha de um processo de concepção, experiência inacabada. É um exercício extremo de esvaziamento total, redução máxima de adornos, tentativa de novo caminho. Se será um produto de experimentalismo radical falhado, concedo que sim. Não me considero um cinéfilo, ainda não, mas a minha a atracção é por cinema não por filmes. Branca de neve pode ou não ser um filme, mas é uma experiência de cinema. Falhada. Dificilmente se encontrará em Branca de neve algum factor capaz de nos exaltar os sentidos. Pode ser incómodo e difícil para o espectador, provavelmente não terá sentido. Já vi pior.
O julgamento da personalidade João César Monteiro pode não ser consensual, era uma figura incómoda, um polemista, por natureza não por necessidade de atenção. Só com má vontade, só quem não conhece os seus filmes e as suas intervenções fora deles pode duvidar disto e duvidar da autenticidade de toda aquela desordem, da sua honestidade intelectual.
[Santos, digo isto envergonhado, e desde já pedindo desculpa, mas as tuas maiúsculas fazem, realmente, algum ruído.]